Claudio Abbado |
O monstro é como pedra rolada num terreno íngreme
e com final indecifrável, é nada sem seu mentor. Assim como a vida que flui de uma
obra musical especifica só tem alma quando posta sobre mãos cuidadosas e
atentas. Há quem diga que as mãos do italiano Claudio Abbado nunca foram
firmes, e que sua fala amistosa, suas posições marcadamente democráticas eram
atavio ao fato de que o maestro tenha tido a dura missão de suceder em 1989 o
Maestro e ditador austríaco Herbert Von Karajan a frente da Orquestra filarmônica
de Berlim. Poderia seguir esse texto demonstrando vida e obra desse grande gênio
da batuta, de modo a fazer uma volta analítica e explicar sua veia artística
(já que era filho do famoso violinista e compositor Michelangelo Abbado) de
como ainda pequeno frequentava as principais salas de concerto, ou de como
fazia parte dos ensaios de concertos e neles viu a dinâmica severa de liderar
um grupo orquestral , como quando relatou sentir-se repelido da ideia de
regência por ver na figura abusiva e tirânica do grande Maestro italiano Arturo
Toscanini para com os músicos.
Tudo isso desenha enorme sentido ao grande nome
que Abbado representa para a música erudita contemporânea. Através de seu
posicionamento polido e não menos enérgico conseguiu manter-se a frente da
principal orquestra em atuação que se conhece: Filarmônica de Berlim por 13 anos e não só.
Foi líder de tantas outras tão importantes e expressivas quanto: Orquestra Sinfônica
de Londres, Diretor musical da ópera estatal de Viena, do Teatro Alla Scalla de
Milão... Esteve acima, viu a glória, sofreu ataques e oposições de quem o
julgava já ultrapassado. Em 2000 foi diagnosticado com um câncer de estomago e
em seguida sua demissão da Filarmônica de Berlim. Todos esses fatos poderia ser
o foco principal deste argumento sobre o qual discorro. Mas sinto ser mais
importante identificar de que forma o Maestro Claudio Abbado fez existir o
poeta romântico tardio Gustav Mahler.
É indizível a compreensão que existe da obra, do espírito e da
materialização da alma do Mahler quando postas sobre a batuta do Abbado. Sem o
apuro delicado com o qual o maestro desengavetou a importância da obra do
compositor austríaco, possivelmente ele fosse ainda visto como poeta menor,
marcado apenas por ligar a música do século XIX ao período moderno. É
sobremaneira o casamento perfeito entre a grandeza das sinfonias e canções
malherianas (sobre tudo a canção da terra Das Lied Von Der Erde) a doçura arquitetônica do Abbado fazê-los
estar juntos como um só diante de qualquer plateia. Isso tudo só tem sentido
quando entendemos a demanda de trabalho a qual dedicou o Maestro Abbado em toda
sua carreira a ler a obra do Austríaco Mahler. Ele não só oportunizou espaços
para que fossem executadas as suas obras como deu importante espaço de
divulgação através da gravação de suas principais peças e também não deixando
que em seus principais concertos Mahler estivesse representado. Não vejo pecado
nesse sentido.
Dedicar-se como o fez a obra de Gustav Mahler só contribuiu para
que o homem por trás da casaca e da batuta fosse sendo desconstruindo o mundo e
os estigmas que lhes impuseram. Se lhe faltava tirania, acentuava-se nele a
percepção leve de que qualidade não se exige aos berros ou com atos
institucionais que tolham a liberdade, a mesma liberdade que o fez não se
prender apenas à obra do Mahler.
Abbado é antes de tudo um visionário que prima pela qualidade. Não se deixou
prender a um compositor apenas, e embora tivesse nítida predileção sobre a obra
do Mahler, sabia a importância de passear por outras escolas, outros períodos.
Fato esse que o fez como último ato frente à Filarmônica de Berlim, a série das
nove sinfonias do Beethoven. Gesto que demonstra sua prudência diante dos
espaços em que se coloca. E embora também esteja visivelmente marcado em sua
gestão o espaço atento para a execução de obras mais modernas que barrocas, não
deixou de lado a atenção para autores mais batidos como Rossini, Shubert,
Mozart.
O que o difere nesse sentido, é a voluptuosidade com a qual consegue
confrontar toda a verdade que existe por trás do Mahlerismo e quando se dispõe
a reger uma obra sua, o faz como um exercício espiritual. E essa alma sempre
será prestigiada como quando voltou a reger a Filarmônica de Berlim para a
gravação da 6 Sinfonia do próprio Mahler e que essa mesma gravação lhe rendeu o
premio de Melhor Gravação Orquestral e Gravação do Ano em 2006 da revista
Gramophone. A Academia da Orquestra Filarmônica de Berlim estabeleceu o Claudio
Abbado Composition Prize em 2006 em sua homenagem. Sua postura caquética, débil
e os gestos tão suaves e aparentemente fracos diante dos gigantes músicos, não
o derrubam nem por um segundo. É visível que reger uma obra de quem a admiração
chegou antes da obrigação de pautá-la por modismos, faz diferença célere em
relação a recepção do que se executa.
O cansaço aparente, o fôlego que falta toda vez que vejo uma execução sua
diante da obra do Mahler me faz repousar tranquilo na certeza de que se existe
arte, ela foi feita para os que a sabem tocar. E não afasto a certeza de que a
arte deva ser partilhada e consiga alcançar os subsolos das camadas sociais, é
inclusive um dever de quem promove a arte, mas entendo com essa fala que é
preciso mais que alma para se debruçar sobre uma peça sinfônica. É muito mais
que a compreensão do período, da escola, das características analíticas e tão
claras que qualquer estudioso da música possa identificar, é ir além de toda
essa obviedade que vejo mergulhada a contemporaneidade musical e tomar para si
como sendo de fato seu. E não no sentido da posse, mas de sentir-se afagado
pelas mãos que um dia escreveram tais preciosidades. É entrar em seu espírito como
sendo um fiel companheiro que mais escuta que fala, e fazer do seu estrado, da
sua batuta, do seu silêncio quase vultoso (como vejo sempre o Abbado) um
diálogo primoroso entre a razão e o espírito quebrantado de alguém que já não
está mais presente, aparentemente.