sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Disse o Pessoa que o poeta é um fingidor. E que finge tão completamente que chega a sentir que é dor a dor que de verdade sente.

Poucas vezes vi tamanha excitação e aclamação perante a figura de um músico solista de sua própria orquestra como no concerto de ontem a noite da série Laranjeiras da Orquestra Sinfônica de Sergipe. Observação essa que prevaleceu sobre meu desejo de não escrever hoje. Há tanto que pode-se dizer sobre a atmosfera receptiva que envolveu o palco do Teatro Atheneu; desde a própria orquestra com a qual por apenas uma noite me dispus a fazer as pazes e vê-la distanciada de um olhar nublado e que até por isso pensei duas vezes em chamar esse post de " Se eu me apaixonar vê se não vai debochar da minha confusão. É que uma vez me apaixonei e não foi o que pensei... Estou só desde então", o solista ou também a figura serena do maestro sobre o estrado.

Depois de ter visto no municipal do Rio de Janeiro há um mês o Ballet Coppélia e sentir que aquilo havia sido das primorosidades que objetivo ver de quando em quando sempre que me dispuser a sair de minha cidade, e de idealizar o que é estrangeiro à minha realidade, voltar a Aracaju e ouvir a ORSSE me tomou de assalto a felicidade de chamá-la de minha e de recebê-la com o orgulho necessário a singeleza posta sobre o primeiro momento do concerto onde foi executado a abertura da ópera A flauta Mágica de Mozart e a Fantasia sobre a ópera Carmen para Contrabaixo e orquestra do norte americano Frank Proto. E bastava mesmo essas duas peças para que a noite tivesse sido completa.
Maestro Daniel Nery - Mozart - Beethoven - Jair Maciel
Tudo aconteceu terno e de algum modo, mesmo em se chegando o fim de ano e o cansaço de uma temporada conturbada, como tem sido até aqui, não atribulou em nada a noite que parece que desde sua gênese sagrou-se vitoriosa. Como foi quando desde o início, a orquestra encheu o teatro com um som vigorante e nada fúnebre como quase sempre entendo a abertura da Flauta mágica. De modo a ter sido dançante e bem articulada em uma cadência convidativa a que pedagogicamente entendêssemos o espirito iluminista da obra. A uniformidade saltava vistosa do maestro Daniel Nery ao grupo e se estabelecia em uma unidade sequencial de sons em muitos trechos dialogando aconchegante, tão viva e firme quanto o necessário como prelúdio para o que chamarei de maior presente da noite, o solo do contrabaixista Carioca Jair Maciel na Fantasia sobre o tema de Carmen.

Daí talvez a necessidade de explicar a escolha pelo segundo título do post. E quando falo em dor e fingimento é apenas como metáfora para o que entendo como fingir não sê-lo quando em verdade o é. Se pudesse se ver de frente, com o olhar de expectador, seguramente se alegraria o contrabaixista em perceber em sua frente o artista como reflexo do desejo. Os aplausos no meio dos movimentos, a ovação anterior quando explicava as peças o maestro ou quando ao final demoradamente o aplaudiram de pé não foi em nada menor do que a proporção do que vimos em som. Em tempo de liquidez e fragmentação identitária, há muito artista que não se compreende como um ou não entende a dimensão transcendental de subir no palco e transformar a brutalidade da estrutura e da regra métrica em arte. O artista de ontem também finge não sentir, mas em verdade sente e o expõe exibicionista o interior que dedilha o instrumento como se não houvesse plateia, orquestra, maestros, medos e anseios, e se coloca diante de nós como brincar em seus estudos individuais em que se pode permitir imprimir sobre a leitura qualquer tom que destoe do convencional e faça sua própria interpretação. 

Não menos notável a cumplicidade dele com a orquestra e com o maestro quando os deixavam ser grandes quando era um lapso perceber-se solista em meio a tantos outros instrumentos. Daí a grandiosidade da Aragonaise misteriosa e harmonicamente tão desconstrutora sobre a clareza do piano ao fundo como se nos quisesse mostrar um tablado espanhol e nos fazer entender que a tourada é nada mais que uma tentativa erótica de agarrar o drama pelo pescoço e reconhecer os crimes , as dores, os amores não correspondidos como uma pitada sarcástica das possibilidades do jazz. Ou então do diálogo com a harpa como sendo uma aliança verossímil ou a doçura das madeiras frente a frente com o atino arrebatador das cordas na Nocturne-Micaela’s Aria em um delicado andante, tão puro como obsceno ao desencadear na alma a possibilidade de liberdade e voo. E ao escutá-lo, confesso as lágrimas que açoitaram meu niilismo frente a possibilidade de que saltar de dentro a fora é mesmo olhar-se num espelho que diz ser este movimento a possibilidade de qualquer contrabaixo se transformar em violino caso assim o deseje. Mas não há porque já que se basta.