sexta-feira, 27 de novembro de 2015

"Ah! Criatura! Quem Poderia pensar que Orfeu: Orfeu Cujo violão é a vida da cidade e cuja fala, como o vento à flor despetala as mulheres - que ele, Orfeu, ficasse assim rendido aos teus encantos!" Ou de quando o melhor o tempo esconde, longe, muito longe, mas bem dentro aqui...

Remoí toda a noite o fato de ser tão mais fácil despejar num artigo milhares de sensações negativas sobre algo. A inquietude que se abateu sobre minha debilidade em escrever uma linha que fosse fez-me mais feliz porque me dava tempo de assimilar tanta beleza acumulada e escondida. E é tão mais feliz o entretom desta manhã quando me convenço em explicitar que estive errado muitas vezes em não admirar a Orquestra Sinfônica de Sergipe com olhos de primeira vez.

De sorte, me contou o Quintana que essas coisas que parecem não terem beleza nenhuma são simplesmente porque não houve nunca quem lhes desse ao menos um segundo olhar. E ao fazê-lo ontem, como exercício de resignação, flutuei nas notas de um concerto magnífico. Letárgico, no melhor sentido que possa existir nesta sensação de abandonar o corpo para que se atenue os melhores sentimentos. 

Minhas expectativas em escutar o Adagietto da 5ª Sinfonia do Mahler despencaram ao não conseguir chegar em tempo. Era justo o motivo que me levava a acreditar que valeria a pena sair de casa depois de tantos concertos que me pareceram nulos neste ano de 2015... mas, ainda restava o tempo para que chegasse o Intermezzo da Ópera Cavalleria Rusticana, de Pietro Mascagni e imaginei que me satisfaria em ouvi-la por desconhecer as duas outras obras, e confessar preguiça em por primeira vez não ter o impulso de pesquisá-las antes de ver o Concerto. 
Orquestra Sinfônica de Sergipe

Tudo que havia de esperança de uma noite terna se potencializou, sobre tudo quando, pude vislumbrar o que tanto imaginei ser o correto em termos de formação de público. E esta mescla entre peças tão conhecidas por serem temas recorrentes em outras representações artísticas, como o Adagietto do Mahler, marcadamente identitário como síntese de "Morte em Veneza" junto a obras quase desconhecidas de nosso público como o Concerto em Mi menor para flauta do Franz Benda, usurpou qualquer possibilidade de contradição e negativismos na construção de um programa que não apenas deve ser exaltado, como também reverenciado com uma segunda, terceira ou infindas noites de repetições frente a tantas obras que se repetem ano após anos sem um sentido de beleza maior.

Todas as vezes em que desgostei de um programa ou uma execução da nossa ORSSE, ontem se desfizeram por quase um segundo, e desejei que não acabasse nunca de tocar-me como o foi. Porque no palco não consegui identificar nenhuma daquelas mazelas que sempre reclamei ser impulso para não voltar a vê-los, mas ao contrário, a animosidade, a doçura e a delicadeza à exaustão eram como uma coisa só: flor de cristal brotando em meio aos lírios. A força de um conjunto que encheu de som o pequeno Teatro Atheneu Sergipense e não havia distinção entre os naipes (para além da mecânica pragmática) fazendo-nos vibrar não com um ou outro grupo específico, mas com todo o conjunto, que ontem do início ao fim tinham ares sutis. E quanto orgulho sentiriam ao presenciá-los tantos que por aqui passaram, quão envaidecidos ficariam sabendo da unidade daquelas cordas, que emanava dos violinos e se espalhava por todo o palco como contagio que impregna a alma de coisas boas.

E que profundeza havia no abismo de escutá-los atento. De ansiar os próximo ataques e orvalhar os olhos quando irromperam explosivamente audíveis os contra-baixos em minhas têmporas exaltadas e depois toda esta euforia esvair-se como de sopro na nuances dos cellos naquela Simple Symphony do Benjamin Britten. Nos Pizzicatos que prenderam o riso num movimento terno de contrair e relaxar o fôlego. Ah! Os Pizzicatos! Quantos sopros de sobrevida. Ah! As violas... Por fim, ouvia-se em coro. Por fim ouviu-se também solo e foi como desfazer todas as sombras que se lhes acometera por tanto tempo. Não havia porque desgostar ou exitar em apenas sentir partir delas um eco. E como não dizer nada em absoluto do tintilar daquela harpa que deslizava sorrateira até fazer-se gosta de chuva batendo na janela, ou a esperteza dos violinos, a quem detive longos minutos a encará-los em sua singeleza e não me contive em arrepios de quando em quando? 

A entrega, a dança, e tudo que no silêncio se dobra traduzia-se na figura segura e tão flutuante do Maestro Daniel Nery, a quem tantos agradecimentos eu direciono por trazer a mim tantas indicações novas de programas únicos e especiais, das perspectivas de lisura em sua regência, que colocam a música como acesso a todos e tudo que se possa ansiar ser através da música. Tudo isto que foi mais que evidente na condução de uma das mais súbitas e arrebatadoras execuções do Intermezzo da Cavalleria Rusticana. Nenhuma gosta daquela serenidade, daquela dinâmica incrível de ser silêncio e depois crescer como o quem canta as venturas de um amor fugaz, não seria possível se n]ão houvesse para além d conhecimento, um sentido de interpretação que apenas nasce para poucos de sensibilidade aguçada.  A fim de não cometer nenhum equívoco de memória, acho que o único deslize imperdoável é a não menção ao Flautista Silvio Jackel Neto no programa da noite. Uma falta que me coloca diante de uma posição de não poder saber nada além de que assim como cantou o  Pessoa, já em apenas ouvir tuas notas de ária alada e cheias de vida, sofro a saudade dela e o quando cessar. 

Programa:

DANIEL NERY, regente
SILVIO JACKEL NETO, Flauta
Gustav MAHLER
Adagietto da Sinfonia n.5
Franz BENDA
Concerto para flauta em mi menor
Pietro MASCAGNI
Intermezzo Sinfônico da ópera Cavalaria Rusticana
Benjamin BRITTEN
Simple Symphony